“Precisamos de muito pouco para incendiar a imaginação”
“Precisamos de muito pouco para incendiar a imaginação”

“Precisamos de muito pouco para incendiar a imaginação”


À conversa com…
Isabel Cristina Pires, escritora, psiquiatra e terapeuta sexual (aposentada). Foi diretora clínica do Hospital do Lorvão. Cofundou a consulta de Sexologia na maternidade Bissaya Barreto, em Coimbra. Publica prosa e poesia desde 1987.
Email ic.pires@sapo.pt

Entrevista
Isabel Freire


As “cenas de tórridas relações sexuais que aparecem sistematicamente em toda a literatura dita ‘para mulheres’, em telenovelas ou em filmes de Hollywood” padecem de falta de visão. Falta-lhes variedade. São mecanicistas e apressadas. Resolvem-se em “meia dúzia de movimentos e em grandes orgasmos simultâneos”. A perspectiva é de Isabel Cristina Pires, psiquiatra, terapeuta sexual e escritora. “São contos de fadas estereotipados e simplistas”, que têm “pouco têm a ver com a realidade”. Embora considere que precisamos de muito pouco para incendiar a imaginação, Isabel Cristina Pires não crê que os livros possam ter funções terapêuticas. Apesar disso, são essenciais na formação do terapeuta sexual. A “grande literatura” amplifica o conhecimento das riquíssimas contradições humanas” e espelha uma época.
Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica – O encontro entre a psiquiatria e a sexologia é…
Isabel Cristina Pires – O encontro entre a psiquiatria e a sexologia é… uma grande surpresa. Há uma zona em que os dois campos se entrecruzam, claro, mas a grande diferença reside na postura do terapeuta. Enquanto que na psiquiatria há uma patologia que tem de ser identificada e tratada (e que se encaixa num padrão reconhecível), na sexologia existe uma problemática muito mais vasta, muito mais inesperada, porque estamos a lidar não com sintomas e doenças, mas com valores de toda a ordem e com uma dinâmica de casal sempre complexa. Além disso, muitos dos pré-conceitos que habitualmente temos sobre valores e práticas sexuais (que variam com idade, classe social, grau de instrução, etc.), revelam-se completamente errados. O esforço e a modificação na abordagem que tive de fazer para passar de médica de doenças orgânicas para médica de doenças mentais foi semelhante ao que tive de fazer quando passei de psiquiatra a terapeuta sexual.

SPSC – Que silêncios continuamos a escutar no século XXI, em relação à doença (ou à saúde) psiquiátrica?
ICP – Podemos chamar-lhes silêncios, mas eu falaria em ignorância e medo. Ignorância, porque a psiquiatria continua a ser vista como uma espécie de arremedo da medicina, uma coleção de anedotas polvilhadas de jargão psiquiátrico que não merecem muita confiança. Ignorância, quando muitos opinam que a “força de vontade” pode vencer a doença psiquiátrica.
Ignorância, por muitos pensarem que se trata apenas de uma chamada de atenção ou de uma “manha”. E medo, porque as pessoas não recorrem a um psiquiatra por receio de perder o controle das suas vidas, falando a estranhos e tomando medicação psicotrópica, sem se aperceberem que uma depressão é mais grave e invasiva que uma pneumonia ou uma fratura óssea.
Medo, sobretudo da parte dos homens, que veem a depressão ou outros sintomas como uma fraqueza, inaceitável para o papel que desempenham socialmente. Falo sobretudo da depressão, porque é a patologia mais comum e a mais sujeita a falsos conceitos.

SPSC – Em que circunstâncias hoje falamos de sexo a contra-luz (expressão que usa no seu Poema erótico)?
ICP – A metáfora dá ao leitor a liberdade de a ler como quiser. O tal sexo a contra-luz pode significar tudo aquilo que nos invade de repente, a pontada de desejo cego, o adivinhar do outro, um olhar repentino de cumplicidade: precisamos de muito pouco para incendiar a imaginação. Pode significar tudo o que está escondido na sombra e que apenas suspeitamos ou imaginamos, toda a complexidade de emoções que uma interação sexual implica, seja ela casual ou não.

SPSC – Que história clínica mais desconcertante (em matérias de sexualidade) viveu no seu percurso como psiquiatra e como sexóloga?
ICP – Qualquer sexologista tem dezenas de histórias para contar, umas engraçadas, outras trágicas. A que mais me marcou foi a de um casal jovem, de origem rural, em que a rapariga começa assim a sua história: “Sra. Dra., quando eu tinha 14 anos, o meu avô violou-me num descampado”. Nunca mais esqueci estas palavras, ditas com tristeza, mas sem dramatismo nem raiva. Naturalmente que havia problemas graves na vida sexual deste casal, mas graças à persistência, amor e boa-vontade de ambos, foi possível ultrapassá-los.
Outra história engraçada foi a de uma sessentona, rechonchuda, toda bem-posta, que na primeira consulta disparou: “Então a senhora é que é a doutora dos prazeres?”.

SPSC – Há obras literárias que considere importantes (e que recomendaria) a quem faz formação em terapia sexual/sexologia clínica?
ICP – Penso que toda a grande literatura é importante na formação de um terapeuta sexual, na medida em que nos amplifica o conhecimento das riquíssimas contradições humanas, e não porque trate de assuntos especificamente sexuais. Até porque a literatura é o espelho de uma época, reflete os seus valores, e houve tal mudança de mentalidades e comportamentos sexuais nos últimos tempos que não é aí que estarão os ensinamentos. No entanto, devo referir que o romance O Amante de Lady Chatterley, de D. H. Lawrence, publicado em 1928 em Itália, e em Inglaterra apenas em 1960, me tocou pela candura e pela beleza com que fala da descoberta do prazer por ambos os amantes – embora, à época, tenha sido considerado escandaloso. Muito mais do que o conhecimento literário, é o conhecimento humano, a maturidade, que são atributos indispensáveis a um terapeuta sexual.

SPSC – A literatura pode ter efeitos terapêuticos ao nível da sexualidade? Em que medida?
ICP – Eu não diria isso. A grande literatura é como qualquer arte, tem os mesmos fins e as mesmas motivações de um processo criativo.
Poderá eventualmente sugerir, provocar fantasias, mas isso são efeitos colaterais, que não são exatamente “terapêuticos”.
O que me parece é que, na prática sexológica, devemos ajudar os doentes a tornarem-se adultos, no sentido em eles próprios são responsáveis pelos seus comportamentos, pelos seus valores, e não há soluções mágicas que os modifiquem se eles próprios não se puserem em questão. Claro que há muitos livros de autoajuda neste campo que poderão ser úteis, mas não são literatura.

SPSC – Que livro aconselharia a um casal que não se encontra no desejo sexual?
ICP – Nenhum. Como disse anteriormente, se as respostas para os desencontros entre seres humanos a nível sexual estivessem num livro, que bom seria. Mas não é assim: a dinâmica de um dado casal é única e complexa. Os desencontros resolvem-se com tolerância, imaginação e diálogo, não com soluções escritas.

SPSC – Que livro aconselharia a uma mulher que sofre de desejo sexual hipoativo? E a um homem?
ICP – Da mesma maneira, não aconselharia nenhum livro. Se não descobrirmos as causas do desejo hipoativo em mulheres e homens – e elas são várias – nunca conseguiremos encontrar a solução adequada para cada caso. Porque não há receitas prontas a usar, e é preciso dizer isso mesmo às pessoas que nos procuram.

SPSC – Quando é que a literatura é erótica?
ICP – Quando qualquer tema do âmbito da sexualidade é escrito com criatividade e com qualidade, deixando entrever várias leituras possíveis, sublinhando as contradições e complexidades do ser humano. Uma amiga falou-me com entusiasmo do best seller As 50 Sombras de Grey e eu li algumas páginas. “Desculpa lá”, disse eu, “isto é soft porn!” – o tema do
sadomasoquismo era tratado de maneira estereotipada e superficial. Mas isto é apenas a minha opinião…

SPSC – O erotismo não está…
ICP – nas cenas de tórridas relações sexuais que aparecem sistematicamente em toda a literatura dita “para mulheres”, nas telenovelas ou nos filmes de Hollywood. São quase sempre todas iguais, com uma ardência mecânica e apressada, meia dúzia de movimentos e grandes orgasmos simultâneos. São contos de fadas estereotipados e simplistas, pensados e filmados geralmente por homens, que ignoram as diferenças entre sexualidade de homens e mulheres e pouco têm a ver com a realidade da maioria dos casais. Podem ser pontualmente excitantes a nível sexual, mas não as considero eróticas, no sentido em que o erotismo é muito mais íntimo, muito mais subtil e desafiante.

SPSC – Viveu a sua juventude nos anos 1970. O que se vivia naquele momento, em Portugal, do ponto de vista da dialética do corpo, do erotismo e da sexualidade?
ICP – As coisas eram bem diferentes do que são agora. Talvez uma das mudanças mais rápidas na segunda metade do séc. XX tenha sido a mudança a nível dos costumes e moral sexual. Com o advento da pílula, já era aceitável ter relações com o namorado, mas sempre às escondidas: “parecia mal”. Éramos ensinadas a ter “medo dos homens”, porque eles estavam sempre “prontos para atacar-nos”. Éramos ensinadas a considerar o sexo um pecado, quando fora do casamento. Muitas mulheres ainda tinham a primeira relação sexual com a pessoa com quem casavam. Quase ninguém vivia em “união de facto”, a não ser que houvesse um obstáculo, porque a regra invariável era casar, e portanto havia uma enorme reprovação social para os solteiros, viúvos e divorciados que vivessem juntos. Ninguém falava em sexo, nem pensar. No curso de medicina, não havia qualquer cadeira que se debruçasse sobre a sexualidade humana. A pressão social era tremenda: ainda me lembro, já era eu universitária, que a minha tia me ralhou por eu andar de mão dada com um amigo em plena aldeia… mas a partir de 74, com o fim da ditadura, houve uma enorme abertura nesse aspeto, nomeadamente no grafismo de revistas, jornais, capas dos livros e nos temas que subitamente inundaram o mercado. E o aparecimento das telenovelas nessa década, com outro tipo de costumes, ajudou a disseminar uma maior liberdade e tolerância sexuais.

SPSC – Como vê o mundo em que hoje vivemos, desse mesmo ponto de vista?
ICP – Muitíssimo melhor: as relações entre os sexos são mais igualitárias, mais honestas, e a atividade sexual é abertamente aceite, embora ainda falte muita informação e ainda haja imensas ideias erradas e clichês. Mas este tipo de de mudança nunca é homogénea nem repentina.
Há, no entanto, um fenómeno que me preocupa: a violência entre casais de adolescentes. Isso poderá estar relacionado com o facto de muitas crianças não terem sido ensinadas a respeitar limites e normas, e a serem consideradas pelos pais como o centro do mundo. Essas crianças tornam-se profundamente egocêntricas, e em adolescentes facilmente recorrem à violência quando contrariadas ou frustradas.

UM POEMA ERÓTICO
Alguém me mandou escrever
um corpo erótico. Alguém disse:
o sal da vida! A labareda! Escreve.
Fala-me do sexo a contra-luz, ou, se quiseres,
da macieza da boca. Da adivinha
de um dedo, das perguntas
respiradas que depois caem na pele.
Faz com que dois corpos colidam,
que os seios baloicem, que bravos
gemidos sejam o berço de outros
uivos, tudo isto para que a alma
saiba o que lá vem e consinta no ocaso.
Não fales do muco que brota cegamente,
de músculos vulcânicos, da velha cavalgada;
entrámos num rasgão do universo!
O erotismo é isso, disse o mandante do poema:
uns olhos dilatados de gato à procura da luz.
(Isabel Cristina Pires, inédito)

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